Viviane França(*)
Hoje convido minhas leitoras e leitores para algo diferente. Uma breve viagem pelo quadro artístico do artista espanhol Guim Tió (2022). O título da obra? Garotas.
Uma imensa tela verde, duas mulheres de maiô, nadando… essa é uma leitura inicial que eu fiz do quadro. A ausência de margem, ou qualquer horizonte que indique terra firme, chamou muito a minha atenção num segundo momento, quando olhei de forma mais cuidadosa para a obra. Comecei uma séie intrigante de pensamentos mirabolantes. Por que duas mulheres? Sem horizonte? Sem-terra à vista?
O sentimento imediato que tive foi de… medo! Fui lembrando do que tenho ou já tive medo.
Lembrei-me, inicialmente, da sensação que tive na minha primeira viagem pelo mar, num cruzeiro. Não sabia se ficaria aflita ou calma. Apesar de amar o mar e toda as sensações que ele me traz, imaginava navegar por longo tempo vendo o horizonte tocar as águas sem nunca chegar. Como seria?
Somos determinados a pisar sobre o chão, a terra e, de repente, era como pisar sobre uma longa ausência. Tive medo, fiquei um pouco aflita, mas esses sentimentos não impossibilitaram que eu fizesse a viagem com uma sacola de remédios que eu mesma pesquisei nos casos de eventualidades. Não desisti, me desafiei e gostei muito, repeti depois outra viagem.
Lembrei do meu medo de cirurgias, do meu medo de altura, do meu medo de perder pessoas que amo… do meu medo de pisar os pés descalços no desconhecido.
Depois desse ápice, retomando minha viagem ao quadro: foi inevitável não pensar o quanto nós mulheres navegamos ao longo das nossas vidas em águas inseguras, sem-terra à vista. Nem sempre nos sentimos confortáveis como me senti na minha viagem pelo mar. Comecei a catalogar na minha cabeça as inúmeras situações que me deixaram sem horizonte, com medo, insegura, pelo fato de ser mulher. Você já parou para pensar quantas situações te deixaram, como mulher, com uma sensação de insegurança? Nadando como essas garotas, sem horizonte, sem perspectivas. Com os pés descalços sobre o desconhecido?
O quadro também me fez refletir sobre histórias que já ouvi de outras mulheres, histórias aleatórias de amigas, papos descontraídos… enfim… e de forma muito singular me lembrei daquelas histórias que tenho compartilhado aqui nesta coluna. Mulheres que sofreram, se anularam, mulheres em risco de morte, mas que, ao mesmo tempo, não perderam a compreensão de que deveriam seguir em frente, de alguma forma deveriam viver, sonhar e lutar.
O quadro de Tió resgatou todas essas sensações em mim: o percurso do medo à coragem; do silenciamento ao grito; da sobrevivência à vida plena… Talvez isso tenha acontecido de forma tão profunda, porque ao longo dos últimos meses venho refletindo em como compartilhar, e não apenas isso, mas visibilizar mulheres e suas histórias. Mulheres com “pés como asas”.
Por isso tudo e mais um pouco, lancei, na última semana, o projeto SobreVivências com o objetivo de compartilhar na coluna da Mulher histórias inspiradoras de mulheres que são exemplo de força e coragem Mulheres comuns que são exemplos locais (na comunidade, na família, na igreja, na ação social…). Não apenas as mulheres vítimas de violência, mas que tenham uma história de superação motivadora para contar, que alçaram voos inimagináveis.
Sobrevivemos todos os segundos de nossa vida ao machismo estrutural e a tudo o que ele tenta nos tirar. Mas, seguimos como as garotas de Tió, nadamos ainda que sem terra firme à vista, porque temos convicção de que precisamos seguir em frente para uma vida plena.
(*)Viviane França: mulher, Advogada, Pesquisadora, Mestre em Direito Público, Especialista em Ciências Penais, autora do livro Democracia Participativa e Planejamento Estatal: o exemplo do plano plurianual no município de Contagem. Secretária de Defesa Social de Contagem/MG, Sócia do França e Grossi Advogados.