Viviane França(*)
Quando comecei a faculdade de direito, em meados do ano de 2007, uma das minhas matérias preferidas era o direito penal. Minha monografia de conclusão de curso foi exatamente nessa disciplina. Mas o fascínio com o direito penal foi justamente porque por meio dele passei a compreender melhor como o pacto Estado/Cidadão só era possível de ser garantido com a normatização de condutas e as garantias básicas como a liberdade e o direito à justiça.
Como mulher, universitária e, na época, com um conhecimento prematuro da legislação brasileira, tinha a convicção que o estupro era um dos crimes mais cruéis cometido contra as mulheres. Isso por um pensamento racional de que a morte coloca o fim em todas as coisas. Acabou e ponto final: não existe memória ou relato. Mas o estupro não. O estupro viola não apenas o nosso corpo, mas a nossa memória futura, os nossos planos, a nossa essência: nossas subjetividades, ele não acaba com a consumação do crime. O crime é só o começo do sentimento de impotência, do que poderia ter sido se não tivesse ocorrido.
Não faço parte das estatísticas dessa agressão, mas inúmeras de nós fazem e nenhuma está livre de fazê-lo, não importa a idade ou condição social.
Com esse sentimento que eu assisti estarrecida a aprovação do regime de urgência para a tramitação do Projeto de Lei 1904/2024 que equipara o aborto de feto com idade gestacional igual ou superior a 22 semanas ao crime de homicídio para efeitos penais, inclusive nos casos onde o aborto é permitido por lei, como o estupro. A pena para o aborto nas condições do PL se equipararia ao homicídio. Os profissionais da saúde que realizarem o procedimento também serão criminalizados.
O projeto de lei não significa apenas um retrocesso a todos os direitos conquistados pelas mulheres até aqui, como a própria possibilidade de realizar um aborto, nos casos de estupro ou nos casos em que a gravidez coloca em risco a vida da gestante, direitos adquiridos desde 1940. Mas, ignora completamente a mulher como uma pessoa humana de direitos. E também destaca a ineficiência do Estado em garantir a liberdade da Mulher, e o direito dela transitar e viver sem ser agredida, sem ser estuprada. Reposiciona o Brasil em 1939, quando a mulher era vista como um objeto.
O aborto nos casos de estupro como está regulamentado, atende as mulheres, funciona, não precisa ser mudado e, não condiciona em quanto tempo precisa ser realizado por questões obvias. O tempo de uma mulher violada sexualmente não é o tempo das pessoas que fugiram às estatísticas criminais. Junto a violação sexual está a completa desorientação psicológica da sua condição no mundo. O Estado falhou no pacto social de protegê-la. E a família também.
O aborto legal não é um direito conquistado para quem transa sem se prevenir. Para isso temos métodos contraceptivos legais. O aborto legal é uma garantia a mulheres que foram violadas ou que estão com a vida em risco.
Que fique claro: o PL do Estupro possuiu um recorte claro de classe e aponta para aprofundar a segregação social, pois criminalizará mulheres pobres, pretas e os profissionais da saúde pública.
O suspiro de alento diante da tragédia declarada pelo PL do Estupro está na reação da sociedade brasileira. Pesquisa divulgada no dia 20/06 aponta que 2 em cada 3 brasileiros são contra o projeto de lei. A reação popular que ultrapassa todas as barreiras políticas, ideológicas ou religiosas: 66% da população é contra o PL; entre os evangélicos 57% e 68% entre os católicos. A unidade e a resistência das mulheres demonstra que lutar vale a pena, pois obtivemos uma vitória importante: o Presidente da Câmara dos Deputados foi obrigado a recuar na tramitação acelerada do PL.
Sigamos atentas e fortes!
(*)Viviane França: mulher, Advogada, Pesquisadora, Mestre em Direito Público, Especialista em Ciências Penais, autora do livro Democracia Participativa e Planejamento Estatal: o exemplo do plano plurianual no município de Contagem. Secretária de Defesa Social de Contagem/MG, Sócia do França e Grossi Advogados.